FESTA DO CORPO DE DEUS, FESTA DE TODA A HUMANIDADE
1. O livro de referência dos cristãos é, de facto, uma biblioteca – a Bíblia – elaborada ao longo de milhares de anos. Hoje, pode ser vendida e comprada como se fosse um só livro, esquecendo que foi construída por vários autores, em várias épocas e traduzida em quase todas as línguas. Quando se recomenda a sua leitura, é fundamental recorrer a uma boa iniciação para ser fiel ao seu sentido. Não basta dizer que, tal ou tal frase, vem na Bíblia. Essa é uma prática fundamentalista. O biblismo preocupa-se apenas com a materialidade das traduções e não com a sua interpretação. Não podemos esquecer, no entanto, que, mais grave do que o biblismo, é a própria ignorância dos textos.
O que nunca pode ser esquecido, mesmo quando é considerada palavra de Deus, que se trata de um antropomorfismo. Ao pôr Deus a falar, a Bíblia usa metáforas, que têm como referente o ser humano, o único ser falante, no sentido próprio do termo. O recurso às metáforas é o único meio de que dispõem os crentes para se referirem a Deus, à Sua actividade e aos Seus atributos. Deus criou o ser humano à Sua imagem e o ser humano paga-lhe na mesma moeda. É óbvio que, na Bíblia, Deus fala com palavras humanas, as únicas que sabemos. Todas as palavras de Deus contidas na Bíblia foram concebidas por espíritos humanos, ditas por bocas humanas e escritas por mãos humanas. Para os cristãos, existe uma espécie de sinergia entre Deus e os autores humanos da Bíblia. É, ao mesmo tempo, palavra divina expressa em palavras humanas.
Segundo uma lógica que lhes é familiar, os cristãos veem, na Bíblia, a expressão da misteriosíssima palavra de Deus encarnada em palavras humanas. No Antigo Testamento (AT), estava já em acção o princípio da encarnação, que teve, finalmente, a plena realização em Jesus Cristo, Palavra (Logos) de Deus feita carne (Jo 1,14).
Os primeiros onze capítulos da Bíblia (Gn 1-11) têm o cosmos e a humanidade como horizonte. É ao cosmos e a toda a humanidade que Deus fala em parábolas. A partir de Gn 11, o horizonte do relato afunila-se, progressivamente, no quadro de três gerações. Reduz-se primeiro a Abraão; depois a Isaac, um dos seus filhos; e, finalmente, a Jacob, também chamado Israel, um dos filhos de Isaac. A partir de Gn 11 e até ao fim do AT, são estes os principais destinatários dos discursos divinos, os interlocutores de Deus.
Do ponto de vista histórico, o nome Israel refere-se a diferentes grupos humanos. Mesmo quando Deus se dirige ao caos ou aos elementos do cosmos, fá-lo, de facto, em função da humanidade e, sobretudo, em função do povo Israel, o Seu verdadeiro interlocutor na lógica do relato do AT. Mas não esqueçamos que Deus convoca o céu e a terra para servirem de testemunhas contra o Seu povo em contexto de julgamento[1].
2. As teologias dos sacramentos, sejam orientais ou ocidentais, apresentam-se como presença divina e santificante, mas essas elaborações não esgotam as formas de presença de Deus no Universo.
A actuação salvífica de Cristo aconteceu há dois mil anos, mas, como diz Tomás de Aquino, atinge todos os tempos e lugares[2]. É uma realidade muito testemunhada nos textos do Novo Testamento (NT), que importa ler na íntegra[3].
Se fixarmos a nossa atenção em Jesus na última Ceia, descobriremos que as suas palavras – isto é o meu corpo – e os seus gestos de partilha e serviço – lava pés – constituem a essência afectiva e social do cristianismo – de amor e justiça – a verdade central do Evangelho.
A festa do Corpo de Deus não depende apenas dos textos do NT. A sua configuração histórica e problemática medieval, depende da Bula Transiturus de hoc mundo do Papa Urbano IV, de 1264, centrada em dois aspectos da Eucaristia: o seu carácter memorial e a sua natureza de banquete, de refeição e de bebida.
3. Uma das mais belas e realistas apresentações da Teologia do Corpo devemo-la ao Papa Francisco. «Participamos, com muita fé, dedicação e respeito, das celebrações do Corpo de Cristo, mas pode ser que, às vezes, façamos uma profunda cisão ou ruptura entre o que celebramos e a realidade que nos cerca, ou seja, o encontro com os corpos desfigurados, explorados, manipulados, usados, escravizados, destruídos... Pode ser que tenhamos um profundo amor e respeito pelo Corpo de Cristo vivo e presente na Eucaristia, e não O vejamos nos corpos que estão aqui, ali, lá, por todos os lados. Não nos devemos envergonhar, não devemos ter medo, não devemos sentir repugnância de tocar essa imensa carne de Cristo, essa carne da humanidade ferida».
Esta é a festa do grande Corpo de Cristo que é a Humanidade inteira. Corpo real de Cristo são especialmente todos os que sofrem com Ele no mundo, os enfermos e famintos, os rejeitados e encarcerados, os pobres e excluídos... Eles são a humanidade ferida no Corpo do Filho de Deus. Cada cristão, ao fazer memória do Corpo de Jesus, entra em comunhão com todas as energias da Criação.
Como diz a Laudato Si’, uma proposta sobre a ecologia integral, «A criação encontra a sua maior elevação na Eucaristia. A graça, que tende a manifestar-se de modo sensível, atinge uma expressão maravilhosa quando o próprio Deus, feito homem, chega ao ponto de Se tornar alimento místico da sua criatura. No apogeu do mistério da Encarnação, o Senhor quer chegar ao nosso íntimo através dum pedaço de matéria. Não o faz de cima, mas de dentro, para podermos encontrá-Lo a Ele no nosso próprio mundo. Na Eucaristia, já está realizada a plenitude, sendo o centro vital do universo, centro transbordante de amor e de vida sem fim. Unido ao Filho encarnado, presente na Eucaristia, todo o cosmos dá graças a Deus. Com efeito, a Eucaristia é, por si mesma, um acto de amor cósmico. Sim, cósmico! Porque mesmo quando tem lugar no pequeno altar duma igreja da aldeia, a Eucaristia é sempre celebrada, de certo modo, sobre o altar do mundo»[4].
Podemos e devemos comungar pelo fim das desigualdades sociais e raciais, em solidariedade com e nos corpos desfigurados do corpo de Deus que andam pelas ruas clamando pela paz e o bem de todos. «Comunhão não é prémio para os perfeitos. A comunhão é um dom, um presente, é a presença de Jesus na Igreja e na comunidade. Eu nunca neguei comunhão a ninguém», como afirmou o Papa Francisco.
O corpo é lugar de êxtase e de opressão, de amor e de ódio, lugar do Reino, lugar de ressurreição.
O corpo é espaço de salvação, de justiça, de solidariedade, de acolhimento; é lugar da experiência de Deus, da celebração, da festa, da entrega... Celebrar Corpus Christi é cristificar os nossos corpos.
Fr. Bento Domingues in Público, 29/6/2025
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[1] Cf. Francolino Gonçalves, O.P. (1943-2017), A Palavra de Deus como Comunicação, Cadernos ISTA, nº 29 (2014), pp. 6-13.
[2] Summa Theologiae, Tercia Pars, q. 56 a.1 ad. 3
[3] 1Cor 11, 17-29; ver tb. 1Cor 10, 16-17; Mateus 26, 26-28; Act 2, 42; Jo 6, 54-57; 13, 1-17
[4] Laudato Si’, nº 236